Sacada
da diretora Fernanda Pessoa: falar sobre a ditadura militar por meio da pornochanchada.
Selecionou cerca de 150 filmes, escolheu 27, fichou, recortou, montou e contou
uma história: sem legendas, sem narradores, sem explicações. O que dizem os
filmes populares da década de 1970? O que informam sobre a ditadura
empresarial-militar? Que histórias podem ser contadas a partir das
pornochanchadas?
Os
títulos dos filmes utilizados na montagem dão ideia do que se trata: A super
fêmea; As aventuras amorosas de um padeiro; Amadas e violentadas; Vítimas do
prazer; Noite em chamas; Amante muito louca; Terror e êxtase; O porão das
condenadas; Gente fina é outra coisa; Cada um dá o que tem; Corpo devasso; E
agora, José? Tortura do sexo; O enterro da cafetina; Histórias que nossas babás
não contavam; Palácio de Vênus; Elas são do baralho; Eu transo… ela transa; O
bom marido; Árvore dos sexos; Nos embalos de Ipanema; Os mansos.
Primeira
constatação. A ditadura empresarial-militar torturava e matava dissidentes,
censurava a arte, mas autorizava a exibição pública de comédias eróticas. Por
quê? Para distrair as pessoas? Os filmes reafirmavam o ideal estético do
regime? Creio que as duas coisas.
Segunda
constatação. As pornochanchadas eram sucesso de público no período da ditadura,
posteriormente, passaram a ser assistidas clandestinamente nas sessões noturnas
dos canais de televisão. Como não havia tanta pornografia disponível, não
poucos recorriam às comédias eróticas, que eram assistidas quase sem som para
não despertar os familiares, não raro desperdiçando boas trilhas sonoras.
Imagens eróticas consumidas por muita gente vieram das pornochanchadas e, com
elas, o sexismo, o machismo, a misoginia.
Histórias
que o nosso cinema (não) contava foi lançado em 2017. O filme olha para
passado, mas projeta o futuro. Tornou-se ainda mais atual com a eleição de um
presidente que tem tudo a ver com os porões da ditadura e, portanto, com o auge
das pornochanchadas.
Reparando
bem, o tempo presente é uma possibilidade contida nos filmes populares dos anos
1970. Faltou apenas a pandemia. Mas o resto está lá. O ufanismo bocó: “sou
brasileiro com muito orgulho, com muito amor” – cantam as pessoas com a camisa
amarela, com tanto amor e com tanto orgulho que chegam a vaiar o hino nacional
de outros países. O entreguismo atávico: tem que “vender essa porra” – disse o
ministro da economia sobre o Banco do Brasil. O racismo estrutural: “Eu fui num
quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada.
Eu acho que nem para procriador ele serve mais” – disse o candidato que seria
eleito presidente da república. O machismo desavergonhado: “Deixa cada um se
fodê do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e
bilionário. Deixa o cara se fodê, pô” – disse o ministro da economia, causando
preocupação na ministra da mulher, da família e dos direitos humanos, afinal,
quem vai controlar a lavagem de dinheiro, ou seja, a prostituição não é
problema.
A
pornochanchada tem muito a dizer. Poucos percebem porque apagar parte da
história é uma especialidade brasileira. Ponto para Histórias que o nosso
cinema (não) contava. A diretora Fernanda Pessoa teve dificuldade para
encontrar e assistir os filmes. Recorreu às cinematecas do RJ e de SP. Esta
última estar sem recursos e ameaçada de extinção atesta que o esquecimento é
política de Estado. É por essas e outras que a ditadura empresarial-militar
precisa ser passada a limpo. Empurrar a história para debaixo do tapete resulta
em repetir o passado. É o que está acontecendo.
No
futuro algum cineasta contará a história do tempo presente a partir das falas
dos apoiadores do regime, o filme terá um quê de pornochanchada, se parecerá
com Histórias que o nosso cinema (não) contava, mas talvez não existam mais
cinematecas nem filmes antigos. A história se repetiria sem que as pessoas
percebessem. É o sonho do governo, seria um pesadelo para o povo.