O poeta João na República do Platão


  “Para não matar se tempo, imaginou:

Vivê-lo enquanto ele ocorre ao vivo;...”

(JCMN. Habitar o Tempo. A Educação Pela Pedra)





Escrever sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto é muito prazeroso. Por um lado porque o seu estilo, o seu rigor, a sua concepção de poesia, nos transmite a intensidade de sua escrita, forma e conteúdo se completam. E por outro, o peso e responsabilidade que temos ao falarmos alguma coisa sobre uma obra tão grandiosa como a de Cabral, que instiga-nos, provocando-nos sensações de risco e júbilo que nos atrai. Mas não devemos temer aos riscos, como diz o próprio autor: “Fazer o que seja é inútil./ Não fazer nada é inútil./ Mas entre o fazer e o não fazer/ mais vale o inútil do fazer”. (JCMN. O Artista Inconfessável. Museu de Tudo). Os abismos que beiramos, é necessário dizer, que este texto é um recorte muito particular e obedece apenas a uma breve leitura dos aspectos da estrutura racional e dialética do poeta, com uma rápida referência ao que pensava Platão a respeito da função do(a) poeta/poesia, sem pretensões de última palavra, e até mesmo correr o perigo de cair no abismo. Mas, como diria Nietzsche - ao se defrontar com o abismo, temos três opções: recuar, diante do eminente perigo; avançar, e se perder na imensidão do abismo; ou avançar, e alçar vôo de águia. A primeira opção é a de um ser amedrontado, vive a fugir de tudo, inclusive de si mesmo; a segunda denota uma ousadia a partir do susto e do desespero diante do abismo; daí brotam as duas saídas restantes: avançar e se esborrachar, ou seja, se perder totalmente na caoticidade do mundo; e a outra representa  enfrentamento e equilíbrio. Mas, e o ato de se jogar no abismo, não é uma atitude de bêbado ou de Dionísio? Quem prevê os perigos dificilmente os enfrentam sem procurar rodeios, e por que não recuos? Mas, parece que tudo tem o seu duplo. E o vôo soberano da águia é também os olhos de Apolo, é o esclarecimento, é o domínio da razão.
Platão entendia a poesia como um discurso imitativo do real, para ele, sua argumentação era falha por não se fundamentar inteiramente na razão, por haver a interferência do poeta em querer reproduzir os fenômenos, o real e o que podemos falar do real, através de sua arte. Nesta relação, o poeta apenas deveria narrar os acontecimentos na sua pureza primordial. Diz Platão: (...) por onde a razão, como um sopro, nos conduzir, por aí devemos ir. (PLATÃO, A República. Clássicos Garnier, vol. 1. 1965. Pág. 160). Platão está pensando em como deve ser a educação na Republica, e os poetas, às vezes, fantasiam a realidade. Por isso eram tidos como maus educadores, pois suas poesias permitiam interpretações equivocadas, deturpadoras do real.
João Cabral de Melo Neto (JCMN) foi um narrador austero do real. Assim como Platão, JCMN não admitia na “cidade” ficções alegóricas, era necessário representar tudo, como se é, seja na epopéia, na poesia lírica ou na tragédia. Poeta do concreto, construtor do verso na matéria viva. Faz poesia com coisas, com a razão; que se contrapõe a poesia da inspiração, do improviso, do espontâneo ou a valorização de palavras poéticas, “como se o poema estivesse em algum lugar à espera do resgate”, diz ele. Em poema intitulado Catar Feijão o autor versa e apresenta sua predileção por uma poesia de difícil mastigação, grãos que podem quebrar dentes mais afoitos a mordeduras apressadas; “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a com risco.” (JCMN. Catar Feijão. A Educação Pela Pedra).
Isto não significa nenhuma ruptura com a inventividade, mas a submissão de todo o fazer poético a uma construção rigorosa da poesia. A poesia de JCMN é anti-poética ou anti-lírica. Dizia ele que o poético-lírico dá sono ao leitor, a melodia produziria o enfeitiçamento, deixando-os inebriados. Assim como Platão, JCMN não aceita o entretenimento vazio, pois este enfraquece o espírito dos “guardiões”. JCMN é um combatente de todo o tipo de superstições e misticismos. Com sua lâmina flamejante, assume a dianteira, atravessa desertos, nos deixando mais fortes, porque foi desvelado os mistérios do mundo. Agora existem coisas reais: a natureza e suas forças e a produção humana como um todo complexo. Nesta relação, sua poesia buscou realizar um diálogo puro e claro; geométrico, porque é definido e original.
Cabral voa serenamente aos abismos, entra e sai das cavernas com naturalidade, atravessa dias e noites e os seus olhos de carcará do sertão permanecem acordados. Como Prometeu, toma o natural e o divino e os ajusta aos desígnios humanos. É neste sentido que no livro O engenheiro e poema homônimo, o autor busca construir um edifício social, uma geometria civil. Diz ele: “O engenheiro sonha coisas claras: (...) o engenheiro pensa um mundo justo, (...) A água, o vento, a claridade,/ de um lado o rio, no alto as nuvens,/ situavam na natureza o edifício/ crescendo de suas forças simples.” (JCMN. O Engenheiro. O Engenheiro). Pode-se notar neste poema um forte elemento racionalista, frio, com estruturas rígidas. Mas o estético, apesar de ser uma marca muito singular de Cabral, o seu rigor era muito mais uma forma de demonstrar entrega ao trabalho do que propriamente criar novos métodos de fazer poesia, tanto que ele apenas utilizou, à sua maneira, velhas formas. O geométrico, obsessivo até, é um sentimento de revolta do autor contra os desajustes. Uma tentativa de religação do homem com o todo, sem os entraves que foram construídos no processo de criação humana ao longo de sua história. No livro A Educação Pela Pedra e poema, também homônimo, aparece o fio condutor em que o autor traça um paralelo entre o desenvolvimento histórico da humanidade com marcante presença da pedra como instrumento educativo (gravuras na pedra, a pedra servindo de ferramenta de trabalho). E na segunda parte ressalta a dureza da vida no sertão nordestino, ou qualquer “sertão”. O sertão dentro do homem.
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar a sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar se compacta:
lições da pedra ( de fora para dentro,
cartilha muda ), para quem soletrá-la.
                                                                       
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(JCMN. A Educação Pela Pedra. A Educação Pela Pedra).          
Parece evidente, neste poema, a referida preocupação, em estabelecer sistemas que emanam processos evolutivos construídos na dureza da pedra da vida.
Esta forma de representação – diálogos entre forças propulsoras universais trazidas às particularidades residuais mostram que JCMN foi um militante assíduo, não de um partido político, mas do partido do homem, assumiu a sua causa como poucos. A sua pena sempre a cortar, com golpes fulminantes os céus metafísicos do saber.
Cabô
  

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