Fui
escalado para fazer a apresentação do sarau de 8 anos do Espaço,
como a data é importante, optei pela palavra escrita, e como este
texto não passou pelos companheiros e pelas companheiras, optei pela
primeira pessoa do singular. Vamos lá.
O
Espaço Cultural Mané Garrincha surgiu em junho de 2007. Éramos, na
época, quatro forças políticas: três organizações centralizadas
e um grupo de lutadores independentes (nós, que aqui estamos até
hoje). O objetivo do Espaço era garantir um local para que as forças
de esquerda pudessem organizar suas lutas, por isso o endereço foi
escolhida a dedo: o coração de São Paulo. O Espaço Cultural Mané
Garrincha ofereceu e continua oferecendo seu teto para todos os
lutadores e lutadoras que precisam de um local para se reunir. A
proposta inicial se mantém. Ao grupo de lutadores independentes
caberia tocar o trabalho cultural, entre outras coisas. Foi de nós
que partiu a proposta de nome: Espaço Cultural Mané Garrincha. Em
2008, saíram duas organizações. Em 2010, saiu outra organização.
Ficamos sós. Nosso grupo havia crescido e se fortalecido, o Espaço
idem: já tínhamos nosso blog, o jornal aroeira, os grupos de
estudos d’ O Capital e Cipó de Aroeira. Mas a nossa contribuição
financeira correspondia a apenas ¼ da despesa mensal do Espaço.
Para o Garrincha não pendurar as chuteiras teríamos que
quadruplicar nossa contribuição. Como um bando de duros conseguiria
isso? Tínhamos um mês para avaliar. Lembro-me que, numa das
reuniões realizadas para decidir o futuro do Espaço, um companheiro
que havia se aproximado há pouco tempo escreveu “Garrincha vive!”
na lousa. Aquilo me marcou demais. Pelos companheiros todos,
especialmente os mais novos, e pelo trabalho que vinha sendo
realizado, o Garrincha não poderia pendurar as chuteiras. Era um
daqueles momentos em que não podemos recuar, mesmo sem ter certeza
de que o avanço é possível. Na hora do aperto, valorosos
companheiros calçaram as chuteiras, entraram em campo e a luta
seguiu, renovada. Muitos destes grandes companheiros estão aqui
hoje, é desnecessário dizer seus nomes. Arriscamos. Avançamos.
Garrincha viveu. Ali comecei a perceber que este Espaço tinha sua
razão de ser, e que não morreria facilmente. Hoje o grupo de
lutadores independentes é um coletivo de lutadores.
Por
que Garrincha? Pela irreverência, pela genialidade, pelo riso, pela
simplicidade, pelo deboche contra tudo que é muito certinho, pelas
pernas tortas, pelo desprezo às quinquilharias do capital. Para
Garrincha o melhor carro do mundo não valia uma partida de bilhar.
Garrincha foi “parábola do homem comum roçando o céu”, como na
canção do Chico. E foi a alegria do povo, era um filho do povo
passando a bola no meio das pernas de tudo e de todos. Para nós a
questão sempre foi ter seriedade, mas sem sisudez. Por isso
Garrincha. Mané Garrincha é a vitória do riso. Esses dias, olhando
para trás e pensando neste Espaço, me lembrei do gênio das pernas
tortas. Quando se esperava um gol, Garrincha dava mais um drible.
Pensando em Mané me lembrei dos zapatistas mexicanos. Quando o
Estado e os burgueses esperam discursos, os zapatistas respondem com
poesia; quando o Estado e os burgueses esperam poesia, os zapatistas
fazem discursos. Pensando nos zapatistas me lembrei deste Espaço.
Quando era esperado darmos o nome de Ernesto Guevara, ou de Carlos
Marighella, ou de algum outro grande revolucionário para o nosso
Espaço, escolhemos Mané Garrincha, não nos arrependemos.
Tratava-se de fazer uma coisa quando se esperava outra, ameaçar para
um lado e sair pelo outro. Um pequeno drible, uma pequena
brincadeira. Como seria a chata a vida sem brincadeiras, sem dribles.
Por
que um espaço cultural? Porque só o trabalho cria valor. Porque é
preciso expropriar os meios de produção. Porque é preciso
socializar os produtos do trabalho, inclusive as criações
culturais. Para escrever o futuro, a classe trabalhadora precisa
conhecer o que se escreveu de melhor no passado: de Drummond a
Machado, de Neruda a Cervantes, de Glauber Rocha a Villa-Lobos. Um
espaço cultural de verdade é fundamental para socializar figuras
como as citadas, combatendo, dessa forma, a privatização da cultura
e do alfabeto. Neste Espaço Cultural se discute um convite palavra
por palavra, porque as palavras tem peso e espessura. É o que separa
o panfleto da poesia. De Dostoievski à química mais fina, de Darwin
a Pixinguinha: os revolucionários precisam conhecer e dominar o que
a humanidade produziu de melhor. Marx disse isso. Che disse isso. E
esta é também a mensagem do Espaço Cultural Mané Garrincha.
O
que temos feito? Temos a biblioteca Manoel Gonçalves. E quem foi
Manoel Gonçalves, o Seu Manoel? Foi um homem negro, pobre, lutador e
autodidata que leu O Capital, de Marx. Temos o grupo de estudo d’ O
Capital, que se reúne desde 2008, os mais adiantados estão no livro
II, os que entraram por último avançam pelo livro I. Se estivesse
vivo, seu Manoel ajudaria bastante nos estudos d’ O Capital. Temos
os saraus, como este, por aqui passou gente como o grande poeta
Souzalopes, que levaremos sempre conosco. Temos o jornal aroeira.
Temos o grupo de estudo Cipó de Aroeira, que discute temas
brasileiros, no Cipó já passaram obras como A Rosa do Povo, Casa
Grande e Senzala, Crítica da Razão Tupiniquim e outras. As
companheiras do Espaço organizam o grupo feminista Violeta Parra,
que é independente do Garrincha, mas nos enche de orgulho. Temos
participado das lutas do nosso tempo. Em 2011, quando os mercenários
à lá estado islâmico – esses peidos do imperialismo, esses
peidos com fedor de barbárie – começaram a massacrar os povos da
Líbia e da Síria, ajudamos a criar o Comitê Antiimperialista, que
organizou atividades de formação e atos de rua, e ajudou partes da
esquerda a se mancar, e parar de chamar mercenários de
revolucionários. Estivemos nas lutas por passe livre. Estivemos nas
manifestações que tocaram fogo no país, em junho de 2013.
Estivemos nos atos contra a Copa. Em 2015, os educadores do Espaço
ajudaram a impulsionar a greve dos professores. Estaremos sempre com
os trabalhadores em suas lutas contra o capital e a propriedade
privada.
Marx ensina que o homem fixa sua existência subjetiva nos produtos do seu trabalho. Daí a crítica ao capital que, além de promover a barbárie, também impede que os homens se reconheçam nos produtos de seu trabalho, que se tornam estranhos, e se voltam contra seus produtores. Um espaço como o Garrincha, em alguma medida, nega a alienação promovida pelo capital, isso porque permite a fixação da existência subjetiva dos homens e mulheres que o compõe, que passam e passaram por aqui, inclusive os que já se foram. Um espaço cultural, se verdadeiro, é sobretudo trabalho livre, encontro dos produtores com seus produtos e produções. O trabalho iniciado há 8 anos começa a dar frutos nas nossas criações: nas peças, nas crônicas, nos textos, nas charges, nos poemas, nos contos, nos vídeos, nas lutas de todo dia. Este que escreveu e lê este texto, na próxima atividade, vai trabalhar no caixa ou na limpeza, para que outro companheiro ou companheira possa escrever e pensar. Ou avançamos juntos, ou não avançamos! Esta é a lição dos 8 anos de Garrincha.
Depois
de ouvir uma longa preleção dizendo absolutamente tudo o que os
jogadores deveriam fazer em campo, Garrincha perguntou ao técnico
iluminado: “O Sr. já combinou isso tudo com o adversário?” O
interessante é que Mané nunca combinou nada com o adversário. Daí
os dribles, as fintas, os gols e desespero dos marcadores. Este
princípio nós herdamos do mágico das pernas tortas, nunca combinar
nada com o adversário: por isso não aceitamos nenhum centavo de ONG
nem do Estado. Isso liberta nossos sonhos.
Não
tenho a ilusão de que nosso Espaço vai fazer a revolução sozinho,
nem que vai dar todas as respostas que a classe trabalhadora precisa.
Mas, por outro lado, pensando nesses oito anos, arrisco dizer que o
Garrincha tem alguma importância nas lutas da classe trabalhadora,
porque para fazer a revolução precisaremos de muita luta e um pouco
de pólvora, mas precisaremos também de poesia, literatura, teatro,
cinema, dança, música e ginga. Que venha a revolução para superar
espaços como o Garrincha, mas se esta demorar, que venham mais oito
anos de Espaço Cultural Mané Garrincha. Sempre tive e hoje tenho
ainda mais orgulho de afirmar: eu sou do Mané Garrincha. Há muito
por dizer, mas o necessário está dito. Que venha a poesia, que
venha o sarau. Valeu.
Um Garrinchista
Nenhum comentário:
Postar um comentário