MULHER NEGRA, FEMINISMO E LUTA DE CLASSES



O racismo, em primeiro lugar, é uma arma utilizada pelos ricos para aumentar seus benefícios ao pagar aos trabalhadores negros menos por seu trabalho.

Angela Davis



Kawo Kabiecile Kawo
Okê arô oke
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar o seu terreiro
Epa raio, machado, trovão
Epa justiça de guerreiro 

(Trecho da música “Yá Yá Massemba “ de Roberto Mendes) 



Uma professora negra. Uma escola privada. Crianças de 10 anos. Uma sala majoritariamente branca e de classe média. Discussão: a diminuição da maioridade penal. Esse foi o cenário com o qual me deparei trabalhando como professora auxiliar. Não foi uma aula fácil, mas o tema fluiu, me senti bem por conseguir levar o tema trazendo outro ponto de vista, o ponto de vista do outro, em verdade eu era esse outro. Negra. Filha de nordestinos. Educação em escolas e universidade públicas. Professora.

Fim da aula. Sem conclusão. Muitas reflexões. Uma aluna me busca: “Você é a favor da pena de morte?”, não foi surpresa a pergunta. “Não”, tampouco surpreendeu a resposta. O ponto de interrogação prossegue: “Por quê?”. Contestei firme e tranquila: “Se houvesse pena de morte no Brasil, apenas morreriam negros, pobres e favelados”. Um instante de silêncio e a chibata estalou forte: “Se houvesse pena de morte no Brasil eu não deixaria morrer nem você nem a minha empregada”. As duras palavras sairam doces da criança e na minha boca restou apenas um gosto amargo...

Como não aproximar essa situação com as amas de leite negras, que apenas cuidavam dos sinhozinhos, deixando os seus próprios rebentos a morrer de fome ou carecendo de cuidados. Não é necessário ir tão longe, a empregada é vista da mesma forma por essa criança, que enxergou na professora a mesma condição de subalternidade que há tantos anos nos é imposta. Hoje a herança da escravidão permeia nossos imaginários, nossos atos, nossas histórias...

Mulheres estadunidenses - Movimento Panteras Negras
“Serviço de pret@”, “Da cor do pecado”, “Não sou tuas negas”. São essas algumas das expressões que permeiam o imaginário comum de uma sociedade que “aboliu” tardiamente a escravidão. Somos privados de nossa cultura, identidade, cor, sexualidade. Ser mulher em uma sociedade machista/patriarcal, ser negra em uma sociedade racista que ainda mantêm valores escravocratas, ser trabalhadora em uma sociedade capitalista. São três os pesos que nos empurram contra o solo, abaixo do chão, do asfalto, como flores negras resistimos por romper com esses valores que nos objetificam e nos oprimem.

O Conceito de feminismo negro veio à tona em meados da década de 1970, a partir de reflexões das feministas dos EUA e da Europa, apenas tardiamente esse conceito chegou ao Brasil, no fim de 70. A ideia era compreender as particularidades de um movimento com uma trajetória distinta do feminismo como um todo, de um movimento que traz novas demandas e novos sujeitos ao panorama político.

A mulher branca conseguiu a independência ao sair à esfera pública, nesse espaço já estava há muitos anos a mulher negra trabalhadora escravizada, que apenas ambicionava o descanso de uma vida de grilhões. Com isso não queremos fazer um divisionismo entre brancas e negras, mas apenas compreender ambas as realidades:

O enorme espaço que o trabalho ocupou na vida das mulheres negras, segue hoje um modelo estabelecido desde o início da escravatura. Como escravas, o trabalho compulsoriamente ofuscou qualquer outro aspecto da existência feminina. Parece assim, que o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras sob a escravatura começa com a apreciação do papel de trabalhadoras. (DAVIS, Angela)[1]

Estamos nos cargos com menores salários, mais precarizados e ainda dominamos os maiores índices de analfabetismo no Brasil. Não saímos da Casa Grande! Quando caminhamos pela excelentíssima Universidade de São Paulo e olhamos para os rostos das mulheres terceirizadas da limpeza, nele está estampado uma história, uma classe, um gênero e uma cor... 

Somos privadas de nossa própria existência enquanto sujeitos historicamente dados. A mulher negra hiperssexualizada, objetificada e negada. O que é o carnaval comercializado, concursos de “globeleza”, as funkeiras na telinha da TV senão estereótipos historicamente perpetuados?

Passamos por algumas mudanças de papéis, há advogadas e médicas negras nas novelas, isso sem abrir mão da empregada, porém, como essas se expressam? Mulheres quase sempre estereotipadas como mulheres de origem pobre que conseguiram melhorar, de maneira individual, suas condições materiais de vida, o que é isso se não a ideologia meritocrática. Para o capitalismo não importa tanto que alguns negros e negras apareçam, hoje é “bonito”, “consciência social a gente vê por aqui”. Com o aumento de estudantes negros e negras nas universidades e escolas, lembrando que por mais pequena que ainda seja a inclusão da população negra e indígena na escola esse número vem crescendo. O capitalismo sente a necessidade de criar um mercado específico, temos venda de turbantes, desfiles de “moda afro”, mas tudo é tratado como exótico, com isso aliena-se a demanda e a importância histórica desses elementos, o que gera uma apropriação de elementos dessa cultura sem necessariamente uma apropriação da cultura africana e afro-brasileira propriamente dita. Quer acabar com uma cultura basta escondê-la, aliená-la, omitir sua história e generalizá-la. Isso o capitalismo faz muito bem!

Lutamos por igualdade de gênero, de raça e classe e esses eixos devem permear todas as pautas de luta. Estando a mulher negra sempre inserida na esfera do trabalho, é este um dos setores que mais merece ser reconhecido pela sua história e trajetórias políticas e que mais se aproxima das demandas da classe trabalhadora. Se reconhecer negra é parte importante do processo de luta do sujeito, nos reconhecer enquanto classe faz parte do avanço de nossas demandas, nos reconhecer enquanto gênero é fundamental para romper com as correntes que temos atadas aos pés, que para cada situação de opressão se torna mais pesada de carregar.

Secundarista - Ocupações 2015, São Paulo
Nesse texto citou-se algumas expressões de senso comum, pois bem, linda é a cor da nossa luta que se derrama todos os dias pela emancipação de nossa classe, essas negas estão na luta, não voltaremos para casa grande e faremos das ruas um grande quilombo de resistência contra os ideais burgueses que nos oprimem. Nossa história tem nomes, em nosso corpo tatuadas estão Carolinas, Dandaras, Luisas, Teresas, Rosas, Angelas... Nossa história se escreve com sangue negro e nossa luta se fará com punhos de várias cores e gêneros, mas de uma só classe.

Carpe







[1] Trecho do Livro: Mulher, Raça e Classe – Angela Davis.

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