De Mané para Carlos, de Carlos para Mané


Disse o poeta Carlos Drummond de Andrade sobre Mané Garrincha: “Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho”

Mas que passe? Ou que verso liga Garricha a Drummond? Carlos a Mané? O que o mineiro de Itabira tem a ver com o carioca de Pau Grande? A genialidade, ponto. Drummond também nos alimenta o sonho. Neste sentido, “uma rua sai de Itabira” e vai dar em Pau Grande, ou melhor, “uma rua sai de Itabira”, passa por Pau Grande “e vai dar nos nossos corações”. “Nessa rua passam” Marighella, Cachaça, Marx, Chaplin. Isso para ficar apenas nos Carlos. “São todos nossos irmãos.”

Ninguém definiu melhor Drummond e seu ofício do que o próprio: “Poeta do finito e da matéria, cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto. Dar tudo pela presença dos longíquos.” E também: “O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.” O poeta mineiro está todo nestes versos dos seus poemas.

“O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode.” Este homem atrás do servidor público e do bigode é Carlos Drummond, o poeta de voz pausada atrás dos óculos é sobretudo materialista e irônico, de uma ironia cortante como um drible de Garrincha: “No céu, também, há uma hora melancólica. Hora difícil em que a dúvida penetra as almas. Por que fiz o Mundo? Deus se pergunta e se responde: Não sei.” Aqui deus é humanizado, é mais um João, como os marcadores de Garrincha, Drummond põe deus para dançar. Outro exemplo da ironia drummondiana: “Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis carro, navio, terra. Mas tens um cão.”

Carlos Drummond de Andrade é um poeta da segunda fase do modernismo, seu primeiro livro, Alguma Poesia, é de 1930. Drummond se apropriou das conquistas dos primeiros modernistas (Oswald e Mario, ambos de Andrade também), principalmente do verso livre. Mas o poeta mineiro não parou nisso, avançou, e muito, plantou uma rosa no topo da poesia brasileira e mundial, uma Rosa do Povo. Exemplo disso é o fato de Mário de Andrade ter se recusado a prefaciar a terceira obra poética de Drummond (Sentimento do Mundo), e por quê? Simplesmente porque Mário considerou que não havia mais nada por dizer, estava tudo nos versos do livro. Lembremos que Mário de Andrade foi um dos principais artistas/teóricos do modernismo brasileiro.

Drummond foi todo poesia e inquietação, e foi ateu e anticapitalista, mas não só, foi muito mais. Para ele a poesia estava nas palavras, “penetra surdamente o reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.” Foi um garimpador de palavras, conferindo-lhes novos significados, sonoridades e, sobretudo, possibilidades. Não é exagero dizer que, em seus momentos de suprema genialidade, Drummond conseguiu verbalizar sensações e estados emocionais. Por exemplo,  a angústia e o desespero: “Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?” O poeta, quando genial, reproduz estados de espírito humanos, como nestes versos contundentes. As imagens e construções empregadas podem ser várias, mas precisam exprimir o que sentimos e não conseguimos expressar. Aqui, precisamente neste ponto, separam-se os pequenos dos grandes, Drummond entres estes.

Citemos outro momento sublime de Drummond, neste caso falando de um leiteiro liquidado por um tiro certeiro: “Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue... não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora.”  Que imagem! Uma aurora de leite e sangue sobre um leiteiro estirado no chão. Uma aurora branco rosada sobre o rapaz morto, talvez já amarelecendo, já apodrecendo...

Curiosamente, Drummond, o homem sério atrás do bigode, também cantou o erotismo, não sem humor: “O bonde vai cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.” E nós ficamos imaginando essas pernas de todas as cores.

O Espaço Cultural Mané Garrincha estará sempre de portas abertas para Carlos Drummond, e como não estaria? O poeta é aquele que verbaliza o que sentimos e somos, inclusive nossa insatisfação e vontade de transformar. Então fechemos com as explosivas palavras do “poeta do finito e da matéria”:  “Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.” E ainda: “Então meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. Ó vida futura! Nós te criaremos.”

Viva Mané Garincha! Viva Carlos Drummond de Andrade!

2 comentários:

  1. [Drummond] plantou uma rosa no topo da poesia brasileira e mundial, uma Rosa do Povo.

    como Mário de Andrade...

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  2. Harlei Cursino Vieira19 de junho de 2014 às 18:23

    Adorei o texto! Realmente, Garrincha nos deixou muitos títulos e glórias e a FIFA deve à família do craque muitos favores. O governo tinha que ajudar os descendentes de Garrincha!

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