Indústria do fogo


Do início do ano, até agora, o número de comunidades incendiadas já é de 37. Ora, acidentes acontecem, exclamam os adeptos da casualidade. De fato, onde há fogo, há fumaça – e qualquer Roma é combustível. Então, de 2008 a 2011, mais de 500 incêndios ocorreram em favelas da cidade de São Paulo. Um número impressionante. Quem o explica, parte das mais variadas hipóteses, recorrendo aos fios emaranhados da instalação elétrica clandestina, ao vazamento imperceptível do botijão de gás, às chamas obscenas das velas que indiscretamente lambem as barras das cortinas ou se lançam ao chão como suicidas, aos moleques que perderam o controle sobre sua onipotência de Deus incendiário, ao sádico traído que num gozo de ódio encandeia o seu próprio amor, à ausência de Jesus nos corações impudicos.

Muitas outras explicações podem emergir da imaginação. Não há limites para a mentalidade fantasiosa de uma sociedade fundada num devaneio. Ainda mais quando os fatos não são devidamente apurados.

Não houve, até aqui, nenhuma investigação consistente sobre a causa desses “acidentes”. A Comissão Parlamentar de Inquérito responsável pelo caso, que é formada por vereadores da base governista do município, reuniu-se apenas três vezes! Ou seja, nenhuma conclusão consistente foi encontrada. É possível haver uma coincidência entre a omissão da tal CPI e o número astronômico de incêndios nas comunidades?  



Algumas coincidências têm a insuportável mania de serem forjadas. Veja o caso desta: as favelas vitimadas pela cólera das labaredas se situam em áreas de alta especulação imobiliária, e a remoção delas vai ao encontro dos interesses do capital. Marginal Pinheiros, Jacu Pêssego, Rodovia Ayrton Senna, região do aeroporto de Congonhas, Butantã... Parece até que o fogo anda procurando um bom lugar para residir. Não devia se dar ao trabalho, já que a valorização dos imóveis se espraia por cada canto.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o metro quadrado foi valorizado em 8,8%. Em São Paulo isso também ocorre na mesma progressão. Por conta da combinação de fatores como a diminuição da taxa de juros, o aumento das linhas de crédito, as obras infra-estruturais da copa do mundo de 2014, das olimpíadas de 2016, do metrô, a migração de investidores da bolsa de valores para outras usuras, o mercado imobiliário vive dias de efervescência, e os especuladores dissolvem-se na champanha do investimento recompensado.

Investimento que não é exclusivo da compra de imóveis, ou da construção civil. Uma parte dele é aplicada nos governos. De acordo com o TSE, seis dos dez maiores doadores de campanhas eleitorais de prefeitos e vereadores são empreiteiras. E quase todas as campanhas se beneficiam dessas generosidades. Em São Paulo, a campanha de Haddad foi a que mais recebeu (R$1mi), seguida pela de Serra (R$750 mil) e a de Russomanno (R$500 mil). Na última eleição para prefeito, a candidatura de Kassab recebeu cerca de R$ 6 milhões.

Essas desinteressadas contribuições, servem para nos provar que - a despeito do que pensamos - os políticos são capazes expressarem sinceros sentimentos de humanidade. Virtuosos, eles jamais se esquecem de seus bons amigos, os especuladores. E é por meio de algumas ações arrojadas que demonstram a gratidão que sentem.

O projeto de “pacificação” dos morros cariocas, por exemplo, encarnado nas UPP’s, fez com que o valor dos imóveis das áreas ocupadas pela polícia e pelo exército subissem até aproximadamente 140%, em 5 anos. Em São Paulo, o governador Geraldo Alkimin bancou violenta desocupação de um bairro inteiro, o Pinheirinho, despejando 9 mil pessoas de suas casas, para devolver o terreno onde residiam ao amigo especulador, Naji Nahas. Mas de todos os agraciados, Kassab foi quem mais retribuiu a estima de seus mecenas. Além de conceder-lhes contratos que somaram R$639 milhões, promove uma limpeza higienista pela cidade, a fim de valorizar cada palmo de chão paulistano.

O caso mais explícito disso foi a remoção dos usuários de crack da região da Luz, na clara intenção de valorizar os imóveis daquele bairro (projeto Nova Luz).

Para além dos fatos mais chamativos, há hoje no centro de São Paulo uma política oficial e sistemática de perseguição aos moradores de rua, promovida pela prefeitura e realizada pela Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar. Certamente, a conseqüência dessa política deverá ser a valorização do centro de São Paulo. No que diz respeito às favelas, o fogo faz a vez do gás lacrimogêneo, do cassetete e da bala de borracha. Pois quando não é possível o uso da força, o uso da sabotagem se faz necessário. Qualquer Nero é combustão.

Digo tudo isto como que especulativamente. E que ninguém me vá reprovar, posto que neste grande sistema capitalista, o único direito que temos – quando temos - é o de especular. O resto é estória.

Especulemos, pois. Não com a sanha ambiciosa do capital - este parasita -, que destrói, fere e mata, que domina, oprime e explora, com o único propósito de alimentar e manter vivo um sistema que há muito deveria estar morto. Especulemos com a gana de quem constrói, de quem cura, de quem salva, de quem liberta. Especulemos com a doce curiosidade das crianças e com a ardil malícia dos velhos. Fazê-lo é de nossa obrigação e de nosso interesse.

Pois o que vigora na estrutura da atual sociedade é o obscurantismo mais perverso. Longe de superá-lo, nos tornamos seus reféns. O fascismo nos ata, mãos e pés. É por meio de seus grilhões que o capital submete cada vez mais a classe trabalhadora. Não há limites para sua megalomania - e isso se perfaz de uma forma assustadoramente simplória: se preciso for, metemos fogo!
Marcos +



Obs.: Texto publicado no jornal Aroeira nº 06 (novembro/dezembro de 2012)



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