Editorial (Jornal Aroeira Nº11)



Em uma manhã de sol, certa Baronesa inglesa pôs-se a abrir as cor­tinas do neoliberalismo. Ao olhar o horizonte e ver tanta liberdade, sorriu com seus dentes de ferro, dizendo entusiasmada:

— Isto que chamam de sociedade é algo que não existe (1).

Mais recentemente, no Brasil, enquanto o frio se aproxima, governantes reafirmam a ine­xistência da sociedade (e a existência da tal Baronesa) e se colocam como ateus perante ela. Consequentemente, derrubam a presidenta que a sociedade elegeu, como se esta, de fato, não existisse (2). E assim, a própria sociedade, sem garantias nem direitos, e sem tempo para resolver questões existenciais - já que está fazendo banco de horas -, pergunta-se se é possível existir, ou melhor, resistir.

Se em alguns editoriais passados o “impeachment” parecia somente o novo hino da torcida verde e amarela - que mesmo com o time perdendo todos os placares continuava acreditando na vitória com muito orgulho e com muito amor-, agora se assemelha mais a um grito de gol. Gol da virada, do golpe final.

Talvez tenhamos subestimado o golpe de Estado quando dissemos que ele era qua­se impossível, devido alguns obstáculos jurídicos e políticos [editorial aroeira maio/15]. Esquecemos que para ganhar a partida, a burguesia compra o juiz, o apito, remonta o time e recria as regras do jogo. E se dissermos “é golpe!”, o juiz apita a expulsão. O jogo é extinto, e o menino mimado, dono da bola, sai com ela embaixo do braço.

Com o desfecho do golpe, as mentes “empreendedoras” já começam a planejar pontes por onde o futuro, e otras cositas mas (3), irão passar. Na “carta aos banqueiros” (4), a expectativa de Temer e sua patota é que a ponte nos faça ingressar “definitivamente no grupo restrito dos países desenvolvidos” (5), que tem lista de convidados à porta e número máximo de ingressantes. Por isso, a ponte será estreita e deixará de fora os “excessos” do antigo Governo Federal (programas, indexações orçamentárias, “seja para salários, bene­fícios previdenciários e tudo mais”), mas somente porque “desembocará na volta do cres­cimento econômico”. Quem não couber em cima, que vá para debaixo da ponte. Afinal, a proposta não é resolver o problema da segregação social do país, nem tampouco romper com o circulo vicioso que prende a nós e toda a América Latina ao subdesenvolvimento, mas sim pendurar as chuteiras e chegar a tempo para o chá das 17h de Thatcher. Durante o chá fala-se em crescimento, mas arrota-se “ajuste fiscal”.

É interessante notar como a discussão se pauta por questões legislativas e não es­truturais. É como se rearranjar algumas leis, extinguir alguns direitos e reformar o sistema político fizesse a economia crescer. Isso, entretanto, equipara-se a colocar sal no chá, pen­sando ser açúcar. Ou seja, não há reforma ou ajuste que nos faça ascender na geopolítica imperialista. As “medidas de emergência”, mudanças constitucionais e soluções fiscais, “muito duras para o conjunto da população”, só farão aprofundar a crise econômica, a se­gregação social e nosso subdesenvolvimento crônico. A roupa da Baronesa não nos serve! Sem que façamos profundas transformações sociais, jamais deixaremos de ser o quintal de impérios ultramarinos - antes explorando trabalhadores escravizados, hoje explorando seus herdeiros, os terceirizados.

Por outro lado, ao contrário do que disse a senhora Thatcher, a sociedade não só existe como é o que melhor caracteriza o ser humano (6); e, assim como os burgueses erraram ao decretar o fim da história, a baronesa também “errou” ao negar a existência dos agrupa­mentos humanos orgânicos, organizados. A sociedade continua sendo a condição de nossa sobrevivência diante da predação e barbárie, mesmo estando cindida em duas classes, dois times – inconciliáveis.

Pois bem, aqui estamos: reunidos no meio de campo. Isto porque o time adversário resolveu marcar gol roubado e o juiz, comprado, nem se manifestou. E nós, que só quería­mos jogar uma pelada, tivemos que elaborar novas estratégias para vencê-los. Concluímos que o mais importante no jogo são os jogadores – dentre eles, o das pernas tortas. A estraté­gia agora é partir para o ataque. Enxotamos o juiz e sua parafernália: apitos, regras e, quiçá, o time adversário e sua bola. Organizados e unidos, não tem quem nos vença!

Que eles construam pontes bem longe daqui, e torçam para não atrapalharem as vistas de certas janelas neoliberais.

Espaço cultural Mané Garrincha
Junho 2016

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1 A baronesa em questão é Margareth Thatcher, também conhecida como a Dama de Ferro, por sua austeridade em relação às organizações trabalhistas. Thatcher foi o segundo governo neoliberal da história (precedido do governo de Augusto Pinochet). Porém, estabeleceu-se como o modelo de neoliberalismo.
2 Deixamos claro, entretanto, que o partido da presidenta também traiu nossa sociedade ao chegar no poder e continuar a bancarrota nacional.
3 Afinal, esta também será a ponte para as já mencionadas contas em paraísos fiscais de Michel Temer, por onde passarão também as propinas de empresas nas negociatas com o governo.
4 Programa do PMDB “Uma ponte para o futuro”, de 29 de outubro de 2015.
5 As frases entre aspas deste e do próximo parágrafo são trechos do tal programa.

6 Baseamo-nos em Karl Marx, que escreveu em O Capital: “(...) o homem é, por natureza, se não um animal político, como acha Aristóteles, em todo caso um animal social”

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