Em uma manhã de sol, certa Baronesa inglesa pôs-se a abrir
as cortinas do neoliberalismo. Ao olhar o horizonte e ver tanta liberdade,
sorriu com seus dentes de ferro, dizendo entusiasmada:
— Isto que chamam de sociedade é algo que não existe (1).
Mais recentemente, no Brasil, enquanto o frio se aproxima,
governantes reafirmam a inexistência da sociedade (e a existência da tal
Baronesa) e se colocam como ateus perante ela. Consequentemente, derrubam a
presidenta que a sociedade elegeu, como se esta, de fato, não existisse (2). E
assim, a própria sociedade, sem garantias nem direitos, e sem tempo para
resolver questões existenciais - já que está fazendo banco de horas -,
pergunta-se se é possível existir, ou melhor, resistir.
Se em alguns editoriais passados o “impeachment” parecia
somente o novo hino da torcida verde e amarela - que mesmo com o time perdendo
todos os placares continuava acreditando na vitória com muito orgulho e com
muito amor-, agora se assemelha mais a um grito de gol. Gol da virada, do golpe
final.
Talvez tenhamos subestimado o golpe de Estado quando
dissemos que ele era quase impossível, devido alguns obstáculos jurídicos e
políticos [editorial aroeira maio/15]. Esquecemos que para ganhar a partida, a
burguesia compra o juiz, o apito, remonta o time e recria as regras do jogo. E
se dissermos “é golpe!”, o juiz apita a expulsão. O jogo é extinto, e o menino
mimado, dono da bola, sai com ela embaixo do braço.
Com o desfecho do golpe, as mentes “empreendedoras” já
começam a planejar pontes por onde o futuro, e otras cositas mas (3), irão passar.
Na “carta aos banqueiros” (4), a expectativa de Temer e sua patota é que a ponte
nos faça ingressar “definitivamente no grupo restrito dos países desenvolvidos” (5),
que tem lista de convidados à porta e número máximo de ingressantes. Por isso,
a ponte será estreita e deixará de fora os “excessos” do antigo Governo Federal
(programas, indexações orçamentárias, “seja para salários, benefícios
previdenciários e tudo mais”), mas somente porque “desembocará na volta do crescimento
econômico”. Quem não couber em cima, que vá para debaixo da ponte. Afinal, a
proposta não é resolver o problema da segregação social do país, nem tampouco
romper com o circulo vicioso que prende a nós e toda a América Latina ao subdesenvolvimento,
mas sim pendurar as chuteiras e chegar a tempo para o chá das 17h de Thatcher.
Durante o chá fala-se em crescimento, mas arrota-se “ajuste fiscal”.
É interessante notar como a discussão se pauta por questões
legislativas e não estruturais. É como se rearranjar algumas leis, extinguir
alguns direitos e reformar o sistema político fizesse a economia crescer. Isso,
entretanto, equipara-se a colocar sal no chá, pensando ser açúcar. Ou seja,
não há reforma ou ajuste que nos faça ascender na geopolítica imperialista. As
“medidas de emergência”, mudanças constitucionais e soluções fiscais, “muito
duras para o conjunto da população”, só farão aprofundar a crise econômica, a
segregação social e nosso subdesenvolvimento crônico. A roupa da Baronesa não
nos serve! Sem que façamos profundas transformações sociais, jamais deixaremos
de ser o quintal de impérios ultramarinos - antes explorando trabalhadores
escravizados, hoje explorando seus herdeiros, os terceirizados.
Por outro lado, ao contrário do que disse a senhora
Thatcher, a sociedade não só existe como é o que melhor caracteriza o ser
humano (6); e, assim como os burgueses erraram ao decretar o fim da história, a
baronesa também “errou” ao negar a existência dos agrupamentos humanos
orgânicos, organizados. A sociedade continua sendo a condição de nossa
sobrevivência diante da predação e barbárie, mesmo estando cindida em duas
classes, dois times – inconciliáveis.
Pois bem, aqui estamos: reunidos no meio de campo. Isto
porque o time adversário resolveu marcar gol roubado e o juiz, comprado, nem se
manifestou. E nós, que só queríamos jogar uma pelada, tivemos que elaborar
novas estratégias para vencê-los. Concluímos que o mais importante no jogo são
os jogadores – dentre eles, o das pernas tortas. A estratégia agora é partir
para o ataque. Enxotamos o juiz e sua parafernália: apitos, regras e, quiçá, o
time adversário e sua bola. Organizados e unidos, não tem quem nos vença!
Que eles construam pontes bem longe daqui, e torçam para não
atrapalharem as vistas de certas janelas neoliberais.
Espaço cultural Mané Garrincha
Junho 2016
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1 A baronesa em questão é Margareth Thatcher, também conhecida
como a Dama de Ferro, por sua austeridade em relação às organizações
trabalhistas. Thatcher foi o segundo governo neoliberal da história (precedido
do governo de Augusto Pinochet). Porém, estabeleceu-se como o modelo de
neoliberalismo.
2 Deixamos claro, entretanto, que o partido da presidenta
também traiu nossa sociedade ao chegar no poder e continuar a bancarrota
nacional.
3 Afinal, esta também será a ponte para as já mencionadas
contas em paraísos fiscais de Michel Temer, por onde passarão também as
propinas de empresas nas negociatas com o governo.
4 Programa do PMDB “Uma ponte para o futuro”, de 29 de
outubro de 2015.
5 As frases entre aspas deste e do próximo parágrafo são
trechos do tal programa.
6 Baseamo-nos em Karl Marx, que escreveu em O Capital:
“(...) o homem é, por natureza, se não um animal político, como acha
Aristóteles, em todo caso um animal social”
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