Libertários
De repente me enxergo ante a
tarefa de redigir e expor algo sobre o movimento anarquista brasileiro do
início do século passado. A falta de tempo me leva à Internet, e a uma primeira
constatação: faltam materiais sobre o assunto. Pesquiso sobre os Centros de
Cultura Social – CCS –, porque imagino que uma greve geral como a de 1917 não
se faz sem cultura classista, e também porque suspeito que os tais CCSs podem
ter muito haver com o que imagino para o Espaço Mané Garrincha. Mas não
encontro nada específico, salvo a história do CCS da Rua dos Trilhos – hoje na
General Jardim – do qual cheguei a conhecer alguns militantes. Descubro também
a existência do Centro de Cultura Social Antônio Martinez, em São Miguel/SP.
Constato também a existência – pelo menos virtual – de mais um CCS, este no Rio
de Janeiro.
De minha curta relação com os
tais libertários guardo boas lembranças, especialmente de sua criatividade,
potencializada pelos chamados grupos de afinidade, e daí as bicicletadas, o
batucação etc. Mas também os achei meio ingênuos, a ponto de não saber
diferenciar a repressão policial canadense da brasileira. E até confesso ter
sentido uma leve mágoa “nacionalista” deles e de mim também, quando uma loira
estadunidense veio cá pra baixo do equador ensinar-nos a batucar, bem aqui no
país do samba. Bom, mas isso foi nos anos 2000, e não no século passado.
Segundo o historiador autodidata
anarquista Edgar Rodrigues, um mestre de obras português depois naturalizado
brasileiro, existiram mais de cem revistas e jornais libertários no Brasil,
sendo quatro diários. Qual a popularidade da imprensa anarquista no início do
século passado é uma pergunta para a qual não tenho resposta, mas não devia ser
pequena, especialmente entre os imigrantes. E foram estes que trouxeram as
primeiras idéias libertárias para o Brasil, especialmente os italianos.
Nos trópicos os emigrados do
velho continente encontraram uma realidade temperada à européia: jornadas de
15h, trabalho infantil noturno, repressão etc. E se organizaram, e resistiram,
sua arma de luta? O anarco-sindicalismo. Seus princípios? O apartidarismo, o
anti-militarismo e a ação direta, a ponto de no II Congresso Operário
Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1913, ser rechaçada a participação de
tribunais judiciais burgueses em lutas sindicais. Vale também lembrar que por
esses tempos, a social democracia alemã, maior força de esquerda européia e
mundial, aprovava no Parlamento o orçamento de guerra, aguçando o apetite
imperialista do estado alemão. Por aqui os libertários rechaçavam as forçadas
contribuições pró-pátria.
Em 1914 explodiu a 1º Guerra
Mundial. As forças produtivas do velho continente adaptaram-se para a
destruição. Diminuiu a entrada de capitais externos no Brasil, reduziram-se as
exportações tupiniquins, subiram os preços internos, elevou-se o custo de vida
dos trabalhadores. O valor do capital variável, só pra não variar, variou para
menos. Tal variação negativa somada à cultura classista libertária levou a luta
de classes para as ruas.
Dezessete não foi a primeira
greve brasileira, mas quiçá tenha sido uma das mais significativas. Ouviram-se
do Ipiranga gritos de outros Pedros, e também da Mooca, nas fábricas têxteis
destes bairros paulistanos começavam as primeiras paralisações da greve geral,
que se se estenderia rapidamente. Nos confrontos com a polícia centenas de
presos e feridos, e um morto, o sapateiro Antônio Martinez. O cortejo fúnebre
do sapateiro reuniu 10 mil pessoas. A Praça da Sé abrigou assembléias gerais
com até 80 mil participantes. Se considerarmos que a classe operária brasileira
em 1920 era composta por mais ou menos 280.000 pessoas, dá para ter alguma
noção do poder do movimento grevista. Ainda que apenas nominalmente e por pouco
tempo, o estado cedeu, reivindicações foram acatadas, entre estas a redução das
jornadas, o aumento dos salários e a não perseguição aos grevistas.
Lembrando das palavras da
marxista polonesa Rosa Luxemburgo, em seu folheto Greve de massas, partidos e sindicatos, penso que há alguns traços
comuns entre o julho de dezessete brasileiro e a Revolução Russa de 1905. “Esta
primeira ação geral direta detonou, como uma corrente elétrica, uma poderosa
reação interna, já que pela primeira vez se despertaram em milhões de pessoas
os sentimentos e a consciência de classe.” Cabe apenas acrescentar que por
estas terras a consciência de classe há tempos era nutrida pela imprensa
libertária e pelos Centros de Cultura Social.
As notícias sobre a Revolução
Russa de 1917 começaram a chegar ao Brasil, e foram intensamente comemoradas
pelos libertários, era a primeira grande vitória proletária. Nos anos 1920
começaram a chegar relatos de perseguições políticas na Rússia soviética. Em
1922 surge o Partido Comunista do Brasil, não pelas mãos da social democracia,
como em outros países, mas sim através de ex-militantes libertários, entre
estes: Astrogildo Pereira Duarte da Silva.
O anarco-sindicalismo sobreviveu
ao longo da década de 1920, mas foi perdendo a hegemonia do movimento sindical
brasileiro. Centenas de libertários estrangeiros foram deportados via Lei
Adolfo Gordo, a repressão recrudesceu. Além disso, o perfil da classe operária
brasileira foi se alterando com a aceleração da industrialização, nos anos
1930, o capital nacional passou recrutar predominantemente braços brasileiros,
sem a mesma bagagem ideológica que os europeus. Paralelamente crescia a
influência do Partido Comunista. A participação dos libertários restringiu-se
aos poucos à atuação em pequenos grupos. A batalha da Praça da Sé contra os
integralistas em 1934 – “Revoada dos galinhas verdes” – foi talvez a última
grande ação dos libertários na primeira metade do século XX.
A força dos libertários
brasileiros pode ter sido ao mesmo tempo uma fraqueza. Em 1923 o anarquista
José Oiticica alertava sobre a inexistência de organizações libertárias capazes
de sustentar o embate ideológico, os anarco-sindicatos não bastariam para
destruir o capital. Os libertários quase não conseguiram impulsionar a luta de
classes para além dos operários emigrados da Europa, não conseguiram incorporar
outras lutas, especialmente as camponesas, tendo sua força restrita a algumas
poucas cidades. Mas, na mesma época em que boa parte da social democracia
européia se curvava ao parlamento burguês e ao nacionalismo imperialista, os libertários
destas terras rechaçavam um e outro. Só por isso já valeria resgatar as lutas
dos primeiros libertários brasileiros.
Zeca.
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